terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Jurado no Juqueri

Outro dia recebi o livro Poemas Arcanos, do meu amigo Assis Lima. Cratense da mesma forma que eu, Assis mora em São Paulo de onde mantém consistente produção cultural que abrange literatura, música e teatro, passando tembém pelo cinema e a pesquisa de cultura.

Com o escritor cearense Ronaldo Brito e o músico pernambucano Antônio Madureira, produziu uma série de discos pelo antigo selo Eldorado, que oferecem às crianças alternativa original à música de massa que em muitos momentos mesmeriza a imaginação infantil e ameaça a paciência dos pais.

Discos como o Baile do Menino Deus, que retomam as tradições culturais nordestinas mostrando uma perspectiva brasileira do Natal, continuam sendo vendidos até hoje - e a peça teatral correspondente é encenada todos os anos em capitais nordestinas. (Outro dia entrei numa loja de discos do Recife e estava tocando o CD do Baile...).

Mas o que isso tem a ver com o Hospital Psiquiátrico Juqueri da foto, segundo a Wikipídia "uma das mais antigas e maiores colônias psiquiátricas do Brasil, localizada em Franco da Rocha", município do estado de São Paulo?

Primeiro, porque o Juqueri também é cultura - basta ver a vasta produção artística de internos da instituição. Um deles, eu soube na época, causou impressão tão forte em Salvador Dali que este o convidou para um período na Espanha.

Depois porque Assis Lima é também psiquiatra e, durante sete anos, trabalhou no setor de perícia daquele antigo Manicômico Judiciário - hoje denominado Hospital de Custódia e Tratamento André Teixeira Lima. E no livro Poemas Arcanos, um dos poemas se chama justamente Juqueri.

Em algum dia de 1981, recebo um convite surpreendente de Assis: queria que eu fosse jurado de um festival de música dos internos do manicômio. O evento foi organizado pelas duas profissionais que hoje dirigem, cada uma, as duas unidades que restaram daquela instituição.

Pois bem. No dia marcado fazia uma bela manhã de sol, o que me animou a conhecer de perto o famoso Juqueri. Lembro-me vagamente de ter tomado um trem até Franco da Rocha.

Ao chegar ao Manicômico, Assis me fez uma rápida apresentação do Hospital. Fiquei impressionado com o ambiente de trabalho dele: um consultório que seria como outro qualquer, não fossem as grossas grades nas janelas e porta.

Vi também alguns quadros pintados pelos internos - muitos deles de surpreendente beleza.

Em seguida nos dirigimos a uma espécie de quadra, onde todos já estavam a postos para o início do festival. Uma a uma, foram apresentadas as músicas concorrentes ao primeiro prêmio. Os músicos também eram internos. Lembro que me chamaram a atenção o guitarrista sem um dente sequer na boca, e a música que cantou - que, de certa forma, descrevia os motivos que o levaram a perder a sanidade mental, abandonado pela mulher.

Depois aconteceu algo que não estava no script. Enquanto se procedia à apuração dos votos, a comissão organizadora solicitou a alguns jurados - inclusive a mim - que cantasse para aquele inusitado público. Entre eles estavam nomes como Renato Teixeira e Venâncio (da dupla Venâncio e Corumba), que prontamente atenderam ao pedido da organização.

Quando chegou a minha vez, estava acontecendo uma daquelas célebres viradas de tempo que tanto caracterizam São Paulo. O sol radiante se fôra, e começava a esfriar para valer. Eu tremia, pois vestia apenas uma camiseta leve. Fui socorrido por Assis, que mandou buscar no almoxarifado uma espécie de blazer preto que todos os internos usavam.

Subi ao palco com aquela indumentária, o que me fez ser muito aplaudido. Para todos os efeitos, eu agora era um deles!

Uma das canções que cantei foi Coração Cometa, parceria com Jorge Alfredo que abre o disco Cabelos de Sansão. Querendo melhor suprir a memória a respeito das razões daquele festival, escrevi a Assis e, entre outras coisas, ele me respondeu:

"...não estou bem certo da motivação específica do festival. Acredito que era pelo momento de renovação de mentalidade e de humanização, veiculada pelo juiz Laércio Talli, que liberou centenas de internos que estavam confinados há mais de 20 anos, por pretensa periculosidade superior à de doentes mentais comuns. Ele contrariou os pareceres dos velhos colegas que faziam uma escola muito conservadora lá. Fique fã desse juiz. Um detalhe eu lembro: da cara de felicidade que ele fez quando tu começaste a cantar aquela tua música (faixa 1 do teu CD, se não me engano): Coloquei o meu ouvido bem colado rente ao chão/pra escutar na terra o cantar da natureza... Desculpe se me atrapalhei nas palavras da letra, pois gosto bastante do Coração Cometa".

Depois da apresentação, uma interna segurou meu braço e disse com visível alegria: "Agora você não sai mais daqui". Outros vieram, animados com o fato de eu ter longos cabelos, ser músico e estar vestindo o uninorme deles, me confidenciar suas dores ou mesmo pedir "um fuminho".

Dizem que de perto ninguém é normal. Mas ao conviver por aqueles breves momentos com os internos do Manicômio do Juqueri, vi que eram mais normais do que muita gente...

Tiago Araripe

2 comentários:

Anônimo disse...

Grande relato Tiago!
e como diria o Arnaldo Baptista:
"mais louco é quem me diz, que não é feliz..."
abraços,
Paulinho

Tiago Araripe disse...

ei paulinho,
lembrei também do maluco beleza raul seixa.
e há o blues de sérgio sampaio em que ele fala algo como "fui deixar a sala para ir morar no porão".
abraço lúcido.